Concurso de Escrita Criativa «Nas mãos de uma criança» | Ensino Secundário - ESM
1.º PrémioHoje, dia 18 de julho de 1949, faz precisamente um mês que cheguei a Portugal, e a solidão, ainda, é a minha mais fiel companheira.
Tudo é demasiado novo, triste, escuro e silenciosamente barulhento. Quando quero que tudo ao meu redor pare, nem que seja por um segundo, pego no meu cão de tecido, a única coisa que eu tenho desde pequenina, e inalo o seu cheiro reconfortante. Já pedi a Carlota, mãe adotiva, para nunca o lavar. O cheiro do cão lembra-me um pouco de tudo com um resto de nada. Um pouco de tudo, tem a mistura do cheiro harmonioso do perfume da minha mãe com o cheiro do cigarro que o meu pai fumava tão tranquilamente na varanda do seu quarto. Apesar do odor não muito agradável, parecia que o mundo inteiro sossegava e eu ficava a contemplar a segurança assaz que pairava no ar, saudades de quando tudo parecia bem; e um resto de nada, apercebo-me que perdi tudo, vivo apenas com a insegura esperança de que tudo vai voltar ao que era, mas confrontada com a dura realidade que, o que ainda me falta perder, é este pequeno cheiro de mimo, conforto e recordação. Desde aquele dia, nada voltou a ser o mesmo! No escuro vulnerável da noite, tenho gravado, repetidamente, nos meus pesadelos o momento em que entrava naquele comboio que me levava para, como todos faziam questão de me lembrar, um “lugar melhor”. Mas havia lugares melhores? Naquele instante, eu tinha a certeza de que o único lugar em que eu queria ficar era ali, exatamente ali, a dois metros da porta do comboio, onde a minha mãe me abraçava desfeita em lágrimas e eu sabia, eu via, eu sentia, nos olhos do meu pai, que algo não estava bem. Pela primeira vez, ele fumava o seu cigarro, mas o mundo não sossegava, não havia segurança alguma para contemplar… Pelo contrário, a agitação era crescente, as lágrimas da minha mãe molhavam-me o vestido e um arrepio subia pelas minhas costas. O choro das mães e das crianças ecoavam nos meus ouvidos como balas… O único que me podia salvar daquela angústia pegou em mim ao colo, apenas com uma mão, pois na outra tinha o meu cão de tecido, andou cerca de três passos em direção ao transporte e sussurrou “gosto muito de ti”, deu-me um beijo na cabeça e retirou-se. A partir daquele momento, a única coisa que tinha era aquele peluche. Sentei-me, abracei-o, fechei os olhos e a solidão tomou conta de mim. Antes de ser entregue ao Senhor Raul, pai adotivo, deram-me um banho e a Carlota vestiu-me um lindo vestido azul. Todos me tratam bem, mas nunca me senti tão sozinha. Tenho muita gente à minha volta, mas ninguém me percebe. Neste momento, eu não sei se choro, se fujo ou se finjo que estou bem, sobrevivo alimentada de incertezas. Tudo o que eu tinha outrora, vi esvoaçar no fumo do último cigarro que o meu pai fumou. Carolina Oliveira, 10.º J |
2.º PrémioA boneca sem nome
Não há lugar em que alguém se possa sentir tão só como numa multidão. É por isso que me sento sozinha. Faço companhia ao silêncio inundando-o com os meus próprios pensamentos: quem sou? O que faço aqui? Não me digam que isto são coisas que uma criança não pensa. Afinal, as crianças são apenas adultos que ainda não perderam a esperança no Mundo. Paro por um momento para observar o que me rodeia. O vento embala as folhas das árvores. O ruído num idioma que desconheço consome a pouca energia que ainda me resta. Ao longe, o mar murmura-me a promessa de que, um dia, me levará de volta. Reparo que nas mãos ainda seguro a minha boneca. Boneca que nego que tenha nome quando me perguntam qual é. Os meus pais sempre julgaram isto um comportamento singular e inexplicável, mas a verdade é que nunca achei que eles fossem entender. Eu vivo esquivando-me entre ordens e recomendações, entre adultos que já sabem qual é o meu lugar no mundo antes mesmo de eu chegar a uma conclusão. A Boneca limita-se a ser. Ela não tem de ir para a escola de manhã, de arrumar o quarto e muito menos foi obrigada a entrar naquele comboio comigo. Ela veio porque quis, ou pelo menos porque achou que acompanhar-me seria o mais conveniente para as suas pequenas pernas de plástico. De qualquer das maneiras tem o dom da liberdade. Liberdade de viver num Mundo sem medo, sem ódio, sem despedidas, sem incertezas. E quando eu visito o Mundo dela esqueço-me do meu. Esqueço-me que não sei onde estou e que dói não saber, que sinto saudades e que receio esquecer porquê. Ela sou eu em tudo o que quero ser. É a personificação de todas as minhas emoções quando as quero sentir de verdade. É a minha maior companhia. É a liberdade de sonhar nas minhas mãos. É alguém que me conhece melhor que eu. Eu, por enquanto, não sei quem sou. Talvez essa seja a única certeza que há sobre mim. Maria Inês d'Alte, 10.º J |
Menção HonrosaJosepha, 1938
2 de dezembro de 1938. Parto hoje para Harwich, na Inglaterra, acho eu. Não entendo muito de geografia, mas isso não é importante, só me preocupa entender o ódio que os outros meninos têm por mim! Na minha mala, levo as minhas roupas preferidas, um casaco e o meu par de sapatos mais recente, o resto fica cá. Levo também a minha boneca, Mayla. Eu não quero ir, os meus pais dizem que não tenho opção, que é para minha segurança, mas não consigo entender. Eles prometem que em breve estaremos todos juntos. Não os consigo ver a chorar! Vou ter com a minha irmã, Raika, que lá já deve ter chegado. Chego à estação, nunca andei de comboio, vai ser a primeira vez. Uns homens de preto aproximam-se e remexem nas minhas coisas todas, não consigo entender o porquê, eles falam aos berros como se algo os incomodasse. Os meus pais choram ainda mais do que em casa, eu começo a chorar também. Não quero ir de modo algum! Não quero deixar os meus pais! Não quero ir só, com outros meninos da minha idade, para um sítio que eu não conheço, para um sítio que o «Der Stürmer» considera inimigo, para um sítio cuja língua desconheço. Recuso-me a embarcar, o meu pai implora que eu vá, repetindo que é para a minha segurança e que em breve voltaremos a dormir todos juntos. Com a cabeça nego novamente, visto que não consigo falar de tanto chorar, não quero embarcar, de todo! O meu pai vê na loja ao nosso lado um pequeno alfinete com a forma de um cachorrinho. Ele corre à loja, compra-o e oferece-mo, dizendo que quando voltarmos a estar juntos ele me dará muitos mais. Contra a minha própria vontade, um dos homens brutos puxou-me e empurrou-me para dentro do comboio. A porta fecha-se. Não tenho como voltar atrás. Pela janela vejo a minha mãe cair de joelhos, desesperada, completamente destroçada por ter que enviar a última filha para longe. Já sentada, mais calma, ainda que receosa, leio o papelzinho que o meu vizinho, Joseph, me deu. Tem escassas palavras escritas em inglês, palavras essas que eu li, instantemente, durante dias, de modo a decorá-las: “Hello” e “My name is Josepha”. Vejo que o colar que me colocaram ao pescoço tem escrito o meu nome, a minha morada de destino e os contactos. Distribuem jornais gratuitamente. Peguei num, gosto de ler, bastante até! Leio que se avizinha uma segunda guerra mundial. Já me falaram da Primeira Guerra, espero que a humanidade não caia nesse erro outra vez. Esta é uma parte da história de Josepha, na primeira pessoa, a ser protegida de uma guerra iminente. Hitler já assumira o poder aquando dos «kindertransport». Os seus ideais antissemitas já estavam a fazer vítimas, tornando a pequena Josepha um inimigo aos olhos das outras crianças. Quando parte, ela pensa que vai rever os pais. Contudo, estes vão ser mortos e Josepha nunca mais os verá. A humanidade deve sempre olhar o passado para proteger o futuro. Rúben Rodrigues, 10.º J |